10.7.10

Fantasias


Primeiro, havia apenas eu. Era um campo verde, com um lago cinza e uma casa. E, em minhas mãos, uma caixa.
Depois, haviam palhaços. E os palhaços me puxaram, empurraram, estiraram, dobraram, cortaram, pintaram e mudaram até que eu me parecesse com eles. Em minhas mãos, repousava a caixa, suave e fria.
Ela era de madeira talhada, com curvas e desenhos de sonhos e desejos matinais, levemente pesada, com um cadeado de bronze. A caixa estava trancada, e se recusava a me contar que segredos guardava.
Os palhaços, delicados como palhaços devem ser quando não prezam pela delicadeza, esticaram suas mãos enluvadas em minha direção e, ao som de uma marcha fúnebre, guiaram-me para a casa. Relutei, gigantesca era minha insegurança, e, apesar de minhas suplicas, percebi-me no interior da construção ao fim da musica.
Agora, não é pertinente lembrar o aspecto da casa. Nunca será. Apenas seu fedor mórbido que até hoje me apanha em momentos de guarda baixa ou embriaguez. O horror que se atulha em meus pulmões é imenso, e sufoca, rápido, sem pena de todo o meu sofrer.
A atmosfera da casa aos poucos se foi e novamente lá estava eu, no campo verde. Nada em minhas mãos. Senti-me mais vazia do que a caixa sem seu valioso segredo. Mas um estrondo encheu meus ouvidos e, no mesmo instante, a casa partiu-se ao meio, as paredes de mármore se desfazendo como se fossem papel. E, quando o barulho silenciou, o lago cinzento engoliu os restos da casa, não deixando ali mais nada além de sua cinzentisse.
Sentei-me no chão, oca. Para mim, não havia mais nada, pois, até aquele momento, a caixa era a razão de tudo, e não havia mais o que fazer, pois, mesmo tendo tudo, eu não tinha a razão.
Foi então que ouvi -não sei como, mas ouvi- passos macios sobre a relva, passos leves e dançantes, quase sobrenaturais. Levantei meus olhos com certo atrevimento, e a imagem que presenciei foi surpreendente.
Uma bailarina, vestida toda de branco, dançava pelo campo com uma melodia silenciosa guiando seus pés. Envolta em tecidos que se ondulavam quase líquidos, ela se deslocava em minha direção, descrevendo longos e complicados movimentos, olhos fechados, confiança no vento.
"Porque vestes essa fantasia estúpida de palhaço?"
A frase dita pelo corpo dançante pairou no ar por um momento. Porque mesmo que eu me fantasiava daquela maneira? Não me lembrava. Não havia razão. Onde esta a razão?
"Não sei"
E a bailarina me puxou pelo braço, e logo eu também dançava como ela, não tão graciosa, mas, ainda assim, suave, dançando sem razão ou rumo em uma harmonia sem fim.
Por horas a fio a dançar, achava que para sempre assim viveria, sem mira certa, causa ou justificação, apenas a me repousar sobre o bailado sem sentido.
O fim da harmonia chegou. E, com ele, o abrimento de meus olhos já desacostumados com a luz. Um brilho amarelo iluminava a sala, mas não era o sol.
Passado tempo de desconforto, reconheci, à frente, uma plateia. Sob meus pés, um palco.
Holofotes velhos se penduravam no teto, atirando seus raios sujos sobre mim. Na plateia, haviam milhares de pessoas. Todas elas iguais e, ao mesmo tempo, extremamente diferentes. Demorei-me no rosto de cada um, e cada rosto, tão parecido, me passava uma sensação tão diferente do anterior. Todas sensações distintas. Nem todas boas. A maioria ruim.
Um ruído estranho saiu da coxia, avisando a entrada da Bailarina no palco.
A Bailarina mantia suas mãos nas costas, escondendo algo, e sorriu (sorriu daquela forma que só as bailarinas sorriem).
Estendeu as mãos e, nelas, segurava a minha caixa, dessa vez sem cadeado, pronta para mostrar o que guardava e acabar com o vácuo que me habitava há tanto tempo. E a Bailarina abriu a caixa. E eu pude ver o que, com tanto cuidado, ela escondia.
Então, a Bailarina se transformou em uma Bruxa Má e sorriu novamente (sorriu daquela forma que só as bruxas más sorriem).
E, com uma adaga, a Bruxa Má apunhalou o segredo da caixa.