31.12.10

Conto de Ano Novo


Dez minutos para a meia noite.

A champagne esquentava na taça de Pietro.

Ele estava sentado à mesa da sala de jantar.

Ele estava só.

Olhava pela janela a movimentação das pessoas que corriam nas ruas à procura de terminar de fazer o que começaram antes. Pessoas à procura de dar um significado ao seu ano vazio. Pessoas com objetivos incompletos. Inacabadas.

Tudo passa.

Até a uva-passa.

Pietro riu de sua própria piada. Ninguém mais achou graça.

Não havia mais ninguém na sala.

Nove minutos para meia noite.

Pietro terminou sua taça e deixou-a vazia sobre a mesa.

Começou a pensar no seu ano.

Um desavisado estourou um foguete antes da hora.

Que compre um relógio.

Seu ano.

Pietro se lembrou das pessoas inacabadas.

Pietro não era inacabado.

Ele não tinha nem objetivos para serem incompletos.

Oito minutos para a meia noite.

Seu ano.

Pietro tinha um bom emprego numa firma de computadores. Nunca levara um esporro do chefe. Nunca recebera elogios do chefe. Na verdade, Pietro nem sequer sabia como era o rosto do chefe. Ele chegava na hora certa. Dava bom dia para o segurança. Sentava no seu cubículo. E saía as seis da tarde. Segundas as sextas.

Pietro não tinha necessidade de sexo. Não comprava revistas pornográficas. Não ligava para os telefones que lhe eram entregues.

Pietro não tinha pessoas em suas vidas. Talvez uma vez por mês sua mãe o ligasse. Mas não falavam por mais de cinco minutos. Talvez um colega o chamasse para um bar. Mas Pietro tinha seus próprios compromissos.

Pietro não tinha hobbies. A não ser um.

Sete minutos para a meia noite.

O interfone tocou.

O porteiro anuncia a chegada de Luciene.

Pietro diz que é engano. Não tem festa na sua casa.

Nem hoje nem nunca.

Mas o porteiro é velho e começa a resmungar com sua voz de velho no interfone.

Pietro desliga.

Pega a garrafa de champagne que descança na geladeira.

A não ser um.

Seis minutos para a meia noite.

Pietro coleciona acasos.

Acasos que geram acasos e, depois, geram um fim.

Essa era a única paixão de Pietro: o Fim.

Ele serviu o resto de champagne na sua taça.

Observou o gás formar pequenas bolhas nas paredes de vidro.

Cinco minutos para a meia noite.

Um exemplo de acaso: uma vez, no ônibus, uma velha com asma deixou cair sua bombinha de ar. Por acaso, Pietro a encontrou. Por acaso, ele a pegou. Por acaso, a velha começou a ter uma crise asmática.

O fim: ela morreu.

Outro exemplo de acaso: Pietro recebeu a correspondência errada. Por acaso, ela indicava lugar e hora para certo homem entregar certa mercadoria. Por acaso, Pietro não devolveu a correspondência. Por acaso, o certo homem não apareceu.

O fim: ele morreu.

Quatro minutos para meia noite.

Pietro precisou ir ao banheiro.

Líquidos geram líquidos, e o fim é a descarga.

Três minutos para a meia noite.

O interfone toca novamente.

O porteiro anuncia a chegada de Maria e Laura.

Acasos.

Pietro manda-as subir.

Ele abre a gaveta da cozinha e estremece.

A noite promete.

Dois minutos para a meia noite.

Toca a campainha.

Está aberta!

As duas moças entram.

Alguns fogos já estouram no céu.

Pietro corta a garganta das duas.

Um minuto para a meia noite.

A faca já está limpa e dentro da gaveta.

As duas moças estão sentadas no sofá, imóveis.

Pietro está sorrindo olhando pela janela.

Termina de beber sua taça.

Meia noite.

Ele brinda com as moças.

E viva o ano novo!

11.12.10

Secreções desgostosas prazerosas em meu ser


Palavras vomitadas no escuro da noite me consomem. Sinto nojo quando a gosma fétida me encosta. Meu reduto particular é tomado pelo cheiro nauseante. O desespero em minha cabeça sufoca e tortura. Não sei mais onde estou e nem o que quero, desconheço minhas razões e os objetivos aos quais me prendo. Apenas sei de ti, e nós, e as palavras que me mantém acordada neste meu momento que antigamente eu chamava de paz.

Mas de ti e nós não sei mais é de nada. E esse vômito que agora me cobre é feito só de águas passadas. O movimento dos moinhos no horizonte já me é entediante. O barulho do vento não assusta mais. Às vezes eu via reflexos à janela e me punha curiosa a observá-los. Agora quero desvendá-los. Atraí-los com pseudo-iscas para a minha armadilha espectral.

Podia muito bem levantar-me e pegar um balde para limpar o chão. Entrar na ducha fria para me purificar. Mas, ao contrário, sinto-me atraída pelo desgosto. Quero mesmo é que esse vômito nostálgico me cubra por inteiro e me afogue em seu querer de agora sei o que ali havia. Penso que se talvez o cultivasse e vomitasse uma vez por noite, o passado, querido e amado, confortaria as almas penadas, sujas e solitárias, que agora vagueiam pelos meus corredores internos a sussurrar nadas ao vácuo em busca de informações que na verdade evitam. Almas masoquistas.

O barulho que o relógio faz me acorda. As palavras que já estão fora do meu ser rodopiam pelo ambiente que não sei nomear mais. Palavras carregam nada mais que simplesmente o que elas querem te dizer. Elas só mostram o que elas querem que você veja. As palavras que eu expeli sempre se dividiram em dois grupos: as cheias de pudores que se juntavam em grupos, aos cantos, e as vulgares. As vulgares se desnudavam diante de todos os olhos, até mesmo dos mais crentes, querendo mostrar tudo o que tinham. Mostravam-se sozinhas, melhores que as outras. Elas sempre eram um pouco mais do que diziam ser, e queriam porque queriam mostrar isso.

Tic Tac Tic Tac.

Vomitei de novo.

Agora acordada.

Normalmente eu vomitava ao me deitar na cama. Antes do repouso total e absoluto (aquele que quando ingênua eu chamava de paz), punha-me a pensar e pensar e pensar e pensar e pensar. Criava situações utópicas para me entreter no que seria uma pretidão sem tempos. Uma coma temporária. E ao criá-las e recriá-las descobri que na verdade eu somente remontava tudo aquilo que já havia de certa forma vivido. Ignorava o recente, pois o recente sai de moda mais rápido. E o recente é aquilo que não gosto mais. Sou uma alma velha. Gosto dos antigamentes.