13.8.11

A Alma


Uma alma infeliz me habita. São noites longas ao lado de um estranho que se ocupa de todo o meu espaço, apertando meu peito com força, partindo minhas costelas e juntando-as em mosaicos.
Tudo o que eu amo foi embora.
E quando o vazio se apoderou de mim, tão vazio ficou, que bateu à minha porta essa pobre alma. Acolhi-a sem pressa, deixando que se alastrasse por aí, afogando todas as quinas, ocupando todas as frestas, tapando os meus buracos. Foi assim que a alma chegou.
De repente, eu não estava vazia mais. Estava cheia. Inundada.
Passei a andar durante a noite pelas ruas escuras sentindo o silêncio na pele. Na mesma pele que era a pele da alma. Meus passos ecoavam nas paredes úmidas. Eu não andava sozinha. Tinha agora esse ser que zelava por mim. E isso não me deixava menos infeliz.
Depois de um tempo, eu já não precisava mais sair de casa. Eu não precisava mais sair do meu quarto. Porque a alma cuidava de mim.
Trazia-me caldos com sabor de solidão, que apertavam ainda mais o nó que a alma havia dado em mim.
Nessa época, eu ainda pensava às vezes. Sim.
Tudo o que eu amo foi embora.
E a alma respondia.
Sim, foi embora. Mas agora eu estou aqui, e pretendo ficar aqui, com você, para sempre.
Que a alma ficasse, eu nunca quis. Mas eu não via modos de mandá-la embora. Sempre que eu tentava me desprender dos cobertores que ela colocava sobre o meu corpo abatido, novos cobertores apareciam, e eu acabava sufocada, cansada de tentar. E desistia.
Um dia eu decidi que a casa era minha e o corpo era meu. Decidi isso depois que vi uma escova de dentes que não era minha sobre a pia do banheiro.
Alma, retire-se daqui!
E aquela gárgola perversa se retirou deixando-me no vazio novamente.
O que eu não percebi foi que, no vazio, ela se multiplicava, depravada, e me envolvia de uma forma descontrolada, entrando pelo meu peito e embaçando meus olhos.
Deitada na cama ao lado daquela alma escorregadia durante todos os dias da minha vida. Era assim o futuro que me aguardava.
O sol podia brilhar do lado de fora da janela, mas no meu vidro só respingavam gotas prosaicas, dia e noite.
Já desisti de me livrar da alma. Ela me convenceu de que sou fraca demais para me virar sozinha.

17.4.11

Amanhã

Hoje eu te amo menos do que eu te amava ontem.


Hoje eu sou mais eu.


Porque eu não te amo sempre a mesma coisa.


São nesses raros instantes, nesse meio tempo em que meus olhos se reacostumam à luz de fora da sala de cinema, raros instantes em que realmente enxergo a realidade.


Ontem eu não fui ao cinema.


Ontem foi aquela época em que eu sorria ingênua às pragas no jardim. Quando eu dizia para você sorrir, "só porque estou pensando em ti". E pensando em ti eu via claramente aqueles dias na praia em que corríamos de mãos dadas, e quando fingíamos não nos conhecer só para poder fazer todo aquele jogo idiota de sedução, desarmados de nossas armaduras invisíveis, amados por completo, e eu, completamente sua naquele abraço que eu imaginava ser o único.


Para sempre.


Ontem era para sempre.


Como Cinderela e diamante, para sempre juntos, pois não importam seus defeitos, não! Não ligo se pela manhã você fede ou se não gosta do jeito que gosto do meu cabelo. Ignoro o fato de que já sofri de dores e horrores em suas mãos. Pois nos amamos e é isso que importa, e mesmo quando você abre a boca e lança ao ar o seu discurso grosso feito de palavras duras, eu quero é que você me inspire e não expire nunca mais, deixe-me presa em seu interior, achando que te conheço de verdade.


E percorrendo suas entranhas, aí eu sei, que quando longe você é assim, não como você perto, diferente, menos interessante, mais esperto, mais misterioso, menos cruel, mas de que importa, se isso é só quando está longe, e, mesmo assim, ontem nunca estaria longe, ontem éramos um, duas metades feitas cada qual do seu tipo de matéria corrompida, com sua necessidade absurda de ser completa pela outra.


Ontem eu te amava imensamente.


Mas ontem eu não disse que te amava. E você não disse a mim.


Hoje eu saí do cinema.


Saí e percebi as pragas que corroíam o jardim, os tropeços que dávamos enquanto corríamos pela praia, e as falas que errávamos ao tentar convencer um ao outro em nosso jogo idiota de sedução. E como às vezes o seu abraço sufocava e doía.


São aquelas cicatrizes (comemoremos, já não são mais feridas abertas!) imperfeitas, arroxeadas, tristes, ásperas sobre a pele fina, aquelas cicatrizes que ficam visíveis nessa transição do escuro para o claro. E com a visão mais clara, eu vejo a realidade.


Hoje o para sempre não existe.


Vendo a realidade, eu entro em choque. E eu quero que você me expire de volta, logo, por favor, para que eu possa ficar sozinha pelos cantos, aceitando que nada disso existe. Que ninguém sorri com o mau hálito pela manhã. Aquelas promessas representadas por farsantes impostores, aqueles perdões imperdoáveis, aqueles beijos de reconciliação. O ser único composto por dois corpos distintos, o casal. Não existe.


Hoje eu sou mais eu.


Hoje eu te amo menos do que eu te amava ontem.


Porque eu não te amo sempre a mesma coisa.


Mas amanhã estarei à espera do seu convite para darmos um passeio pela praia.


9.3.11

Devaneio Bucólico


Você

Em sua massa, densidade e conteúdo

Se resume em todos os meus clichés

(pausa)

Te abraço apertado a evitar frestas

Meu amor por ti transborda

Aflora

Afora o tudo, me acorda em manhãs sutis

Com o perfume de flores da cor do vento

Tu és o meu maior bem

O mais puro sentimento

E fico contente só de ter o teu cheiro

Somente teu

Preso àquele lenço que já nem cheira mais

E teu sorriso bobo

Que me acalenta sob o sereno

Ou o orvalho

Seja o que for!

Chuva de amor

Quando olhas para mim

Me pego tremendo

E parto pro abraço

Tenho-te em laço

Enlaçado

E em claro

Passo as noites em que tu não estás

A contar números e seus radicais

A sonhar, lembrar, prender e defenestrar

Prendo a respiração

E aí tu vens

Como que sempre tivesse estado

E me amparas em teus braços

Brincas com meus cabelos

E fazes graça de minhas saudades

Me levas embora com pressa e,

no caminho,

Me dizes em teu velho tom casual

Que me amas

Que me amas

Depois já nem sei mais

Fecho os olhos

Cruzo os dedos

E que assim sejamos,

eu desejo,

até o fim dos tempos.

12.1.11

Paixão Gourmet

Eu te quero
Te devoro
Tenho fome
Te engulo
Me degluta
Saboreie
Salpicão soturno
Sinto o seu aroma
Sinta o meu
Ao ponto
Agora te quero flambado
Dê-me a pimenta do reino
Picado
Fatiado
Quero te degustar por inteiro
Ao dente
Ardente
Satisfaça-me com toda a sua
Festa de novos sabores